Carta
de apresentação revela que um aluno assumiu as tarefas do grande músico como
"kantor" das igrejas de Leipzig. Médicos, musicólogos e jornalistas
se dividem: sinal de "burnout" profissional ou de sabedoria de vida?
Pouco antes do Natal, uma
descoberta dos pesquisadores do Arquivo Bach de Lepizig agitou o mundo da
música erudita: o musicólogo Michael Maul encontrou no arquivo de Döbeln, na
Saxônia, uma carta de candidatura a emprego de 1751, pouco menos de um ano após
a morte de Johann Sebastian Bach. De 1723 a 1750, o grande músico ocupou o
posto de kantor (diretor musical) nas quatros principais igrejas de Leipzig.
No documento, Gottfried
Benjamin Fleckeisen – antigo integrante do coro da Igreja de São Tomás de
Leipzig, e portanto discípulo de Bach – se apresenta para o posto de kantor
(diretor musical) na igreja de sua cidade natal, Döbeln. Entre outras
qualificações, ele afirma que "durante dois anos inteiros" esteve
encarregado de "executar e reger" a música das igrejas de São Tomás e
de São Nicolau em Leipzig, tarefa que a que fez jus "com todas as
honras".
O exame da biografia de
Fleckeisen leva à conclusão que ele se refere ao período de 1744 a 1746. Por
outro lado, é sabido que, especialmente nos últimos anos de vida, Bach procurou
reduzir sua carga profissional diária, a fim de dispor de mais tempo para outras
atividades – como, por exemplo, a organização de sua obra de compositor. No
entanto, é uma novidade que ele tenha delegado em tão grande escala suas
tarefas centrais como kantor.
Críticas e mobbing
"É grande a discrepância
entre a fama mundial de que a música de Bach goza hoje em dia, e o que sabemos,
de fato, sobre a sua pessoa", comenta Michael Maul em entrevista à DW. Ele
dirige um projeto do Arquivo Bach de pesquisa sistemática das trajetórias
biográficas dos antigos membros do coro de São Tomás, durante a gestão de J.S.
Bach.
Essa lacuna de informação torna
valioso cada novo dado. Na época, Bach foi a terceira opção na escolha do
kantor de Leipzig, e não se pode dizer que se tratasse do emprego de seus
sonhos: as atas das sessões do conselho municipal a partir de 1723 testemunham
numerosos pequenos e grandes conflitos com o músico, tachado de "pouco
diligente" e "incorrigível". Ele, por sua vez, considerava
equivocada a política cultural da cidade.
Apesar disso tudo, os
pesquisadores partiam do princípio que Bach sempre cumprira fielmente seus
deveres profissionais. Agora, surpreendentemente, descobre-se que "um
monitor o substituiu inteiramente, e por um tempo muito mais longo do que se
pudesse imaginar", enfatiza Maul.
Será que o músico altamente
considerado, na região e mais além, portador do título de "compositor da
corte do príncipe eleitor da Saxônia" podia efetivamente se dar a tal
luxo? "Espanta-me que o conselho de Leipzig tenha permitido isso",
revela o musicólogo do Arquivo Bach. "Não se sabe se Bach tomou por
iniciativa própria essa decisão. Ou será que, na realidade, foi uma decisão do
conselho?"
O que se sabe é que, em algum
ponto, o grande compositor perdeu o direito de escolher pessoalmente os futuros
membros do prestigioso grupo musical. Em 1749, ocorreu uma ação que hoje em dia
poderia ser definida como mobbing: na presença de Bach, foi organizada uma
audição para a escolha de seu sucessor – uma séria afronta para um profissional
em cargo vitalício.
Diagnóstico precipitado
Por que o instrumentista e
compositor tão prolífico negligenciou desse modo suas obrigações como kantor?
Diante do novo e sensacional achado, talvez precipitadamente, jornalistas de
música alemães logo falaram de estafa profissional, o "burnout de
Bach".
O médico e musicólogo Wolfram
Görtz, porém, adverte contra diagnósticos a tamanha distância temporal.
Coordenador do serviço ambulatorial para músicos da clínica da Universidade de
Düsseldorf, ele dedicou sua tese de mestrado às cantatas de Johann Sebastian
Bach. "É relativamente difícil constatar um burnout. E se fosse uma
depressão, Bach não teria conseguido compor tanto como o fez em sua última
década de vida", argumenta.
Ou seja: diante de obras como A
arte da fuga ou a Missa em si menor, não há como falar em dúvida de si mesmo,
sentimento de inferioridade ou mesmo perda de sentido existencial. Pelo
contrário, ressalta Görtz: "Bach amava o trabalho rápido e eficiente;
amava as mulheres, sobretudo as suas próprias. E amava a música!"
O médico encontra outra
explicação para o retiro profissional. "Não podemos esquecer que Bach
enxergava mal e que, por isso, possivelmente não conseguia dar conta de certas
tarefas quotidianas."
Mestre na arte de viver
Peer Abilgaard, médico-chefe da
Clínica Helios, em Duisburg, e docente de Saúde para Músicos pela Escola
Superior de Música e Dança de Colônia, concorda com Görtz: para ele Bach é um
fenômeno, justamente por sua capacidade de lidar com diversos tipos de
estresse.
"Ele tinha nove anos
quando perdeu pai e mãe; doze anos quando o irmão, sua figura de referência
mais próxima, morreu; não pôde nem mesmo se despedir de sua amada primeira
mulher: ela morreu quando ele estava viajando. De seus 20 filhos, teve que
enterrar dez. Eu acho muito mais interessante se perguntar como, apesar de
todas essas cargas, ele conseguiu criar uma obra tão vasta."
E, ainda por cima, uma obra
que, longe de só se dedicar ao sofrimento, até hoje comunica consolo e energia
vital a quem a escuta. A conclusão dos especialistas é: Bach era um grande
mestre na arte de gerir as próprias forças, tanto psíquicas quanto físicas. É
plenamente compreensível que ele soubesse se livrar das tarefas que
considerasse incômodas ou secundárias, com a maior tranquilidade.
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