Autor
de O Homem que Calculava usava pseudônimo de Malba Tahan, mas na verdade era
Julio César de Mello e Souza
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No
início do século 20, o público brasileiro foi conquistado por um escritor de
origem árabe em cuja homenagem se comemora, nesta terça-feira, no país, o Dia
da Matemática. A história chamou a atenção do autor britânico Alex Bellos que,
no artigo a seguir, relembra esse "Pelé dos números".
"Em
1925, o Rio de Janeiro vivia um clima de otimismo. A obra para a instalação da
estátua do Cristo Redentor no Corcovado seguia a todo vapor. O samba,
recém-nascido, era a nova bossa, verdadeira mania nacional.
Em
artigo de primeira página, o principal jornal do país, A Noite, apresenta ao
público um novo astro da literatura: Malba Tahan - ou, citando seu nome
completo, Ali Iezid Izz-Edim Ibn Salim Hank Malba Tahan - escrevia em árabe e
sua obra estava sendo traduzida especialmente para o público brasileiro, dizia
o jornal.
Os
contos do autor, no estilo das Mil e Uma Noites, traziam histórias com conteúdo
moral e tocavam de leve em temas ligados à matemática.
Fizeram
um imenso sucesso. Em 1932, Malba Tahan publicou o que se tornaria um dos mais
bem-sucedidos livros já escritos no Brasil: O Homem que Calculava.
A
história se situa no século 13 e começa assim:
'Voltava
eu, certa vez, ao passo lento do meu camelo, pela estrada de Bagdá, de uma
excursão à famosa cidade de Samarra, nas margens do Tigre, quando avistei,
sentado numa pedra, um viajante, modestamente vestido, que parecia repousar das
fadigas de alguma viagem.'
O
viajante é Beremiz Samir - um matemático persa que segue acompanhando o
narrador em uma jornada de 12 episódios nos quais Samir resolve problemas
usando suas habilidades matemáticas.
Em
um dos capítulos, eles visitam a casa do ministro do rei, o vizir Ibrahim
Maluf.
'Atravessamos
o pátio e (...) fomos levados para o interior do palácio. Cruzamos várias salas
ricamente enfeitadas com tapeçarias bordadas com fios de prata e chegamos
finalmente ao aposento em que se achava o prestigioso ministro do rei. Fomos
encontrá-lo recostado em grandes almofadas a palestrar com dois de seus
amigos.'
Beremiz
impressiona o vizir pela maneira incomum como contou uma cáfila de camelos -
ele conta o número de patas e orelhas, e depois os divide por seis. Os camelos
são um presente para o pai da futura noiva do vizir, a jovem Astir, de 16 anos.
Beremiz
nota, no entanto, que um dos camelos não tem uma das orelhas.
Ele escreveu mais de cem livros com seu
pseudônimo
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'Eu
queria fazer uma pequena sugestão', ele diz. 'Se retirardes da cáfila o tal
camelo sem orelha, o total passará a ser de 256. Ora, 256 é o quadrado de 16,
isto é, 16 vezes 16.
O
presente oferecido ao pai da encantadora Astir tomará, desse modo, feição
altamente matemática: O número de camelos que formam o lote é igual ao quadrado
da idade da noiva!
Além
do mais, o número 256 é potência exata do número 2 (que para os antigos é
número simbólico), ao passo que 257 é primo. Essas relações entre os números
quadrados são de bom augúrio para os apaixonados.'
Eu
adoro O Homem que Calculava. O livro nos transporta a um mundo mágico de
beduínos, vizirs, xeiques, príncipes e reis, rico em referências a tradições e
islâmicas e lugares no Oriente Médio. As referências matemáticas, simples e
acessíveis, são o fio condutor da história.
Ele
escreve principalmente sobre aritmética, mas também sobre geometria. E sobre
curiosidades como o quadrado mágico - 'um quadrado cheio de números' - que o
sultão dá de presente a Beremiz após o objeto ter sido salvo da casa de um
calígrafo.
'Depois
de ter observado com meticuloso cuidado o tabuleiro e o quadro, disse o Homem
que Calculava:
-
Esta interessante figura numérica, encontrada no quarto abandonado pelo
calígrafo, constitui o que chamamos um quadrado mágico.
-
Tomemos um quadrado e dividamo-lo em 4, 9 ou 16 quadrados iguais, a que
chamaremos casas. Em cada uma dessas casas coloquemos um número inteiro.
A
figura obtida
será um quadrado mágico quando a soma dos números que figuram numa coluna, numa
linha ou em qualquer das diagonais, for sempre a mesma. (...)
Os
números que ocupam as diferentes casas do quadrado mágico devem ser todos
diferentes e tomados na ordem natural. (...) O quadrado mágico com 4 casas não
pode ser construído.'
Beremiz
diz ainda que quando um quadrado mágico pode ser rearranjado para formar outros
quadrados mágicos, por exemplo, movendo-se a última fileira para cima, ou a
coluna à esquerda para a direita, ele é chamado hipermágico. 'Certos quadrados
hipermágicos são conhecidos como diabólicos', ele acrescenta.
Mágico
e diabólico
O
Homem que Calculava tornou-se, merecidamente, um bestseller. E Malba Tahan
ficou famoso, tão famoso como os astros do futebol.
Agora,
há um detalhe: o livro foi uma fraude literária. Malba Tahan nunca existiu.
Esse era, na verdade, o pseudônimo de Júlio César de Mello e Souza, um
professor de matemática do Rio de Janeiro que nunca pôs os pés no Oriente
Médio.
Mello
e Souza nasceu em 1895. Depois de estudar engenharia na faculdade, passou a
ensinar matemática e escrever contos nas horas livres. Quando ofereceu suas
primeiras histórias ao jornal local, foram recusadas.
Mas
quando mudou os nomes das personagens e dos lugares e ofereceu os contos
novamente, dizendo que eram traduções de histórias do fabuloso escritor
americano RS Slade, os jornais as publicaram.
Mello
e Souza percebeu que só teria chance de fazer sucesso como escritor no Brasil
se usasse um pseudônimo estrangeiro. Seu amor pela matemática tinha despertado
nele o fascínio pelas ciências islâmicas, então, decidiu escrever sobre a
Arábia Antiga usando o nome fictício de Malba Tahan.
Mello
e Souza criou uma história elaborada para Malba Tahan. Segundo a invenção do
brasileiro, Malba Tahan havia nascido em 1885, perto de Meca. Tinha viajado
pelo mundo inteiro, incluindo uma temporada de 12 anos em Manchester
(Inglaterra), onde seu pai era um bem-sucedido mercador de vinhos.
E
muito apropriadamente, o árabe teria perdido sua vida lutando pela liberdade de
um grupo de beduínos no deserto.
Quando
Mello e Souza começou a escrever como Malba Tahan, somente o dono do jornal que
publicava as histórias sabia da verdade.
Em
sete anos, ninguém percebeu que o famoso escritor árabe era na verdade um
professor de matemática carioca cuja outra paixão era colecionar sapos de
porcelana.
Quando,
finalmente, foi revelado que Malba Tahan era, na verdade, o humilde Júlio César
de Mello e Souza, o escritor estava tão famoso que já não importava mais.
Entre
os fãs do autor estavam de crianças ao presidente do Brasil. Hoje, o mais
famoso escritor brasileiro no exterior, Paulo Coelho, também se diz fã de Malba
Tahan.
'Ele
foi um grande contador de histórias', diz Coelho. 'Eu pedi à minha família que
comprasse todos os livros dele. Um dia, eu disse: 'Meu Deus, esse cara é tão
incrível, um dia eu gostaria de conhecê-lo!''
O
jovem Paulo Coelho ficou chocado quando seus pais revelaram que o misterioso
árabe Malba Tahan era, na verdade, um amigo deles, e que morava a poucos
quarteirões de distância.
'Fui
à casa dele', relembra Coelho, 'e olhei para ele, apertei a mão dele e acho que
ele ficou lisonjeado ao saber que uma criança de dez anos estava lendo todos os
seus livros. Não tive coragem de pedir que ele assinasse meus livros porque
fiquei completamente tímido. Malba Tahan nos falou da sua linda cultura árabe e
ele é tão importante hoje porque a tolerância está sempre presente em suas
histórias.'
Mello
e Souza escreveu mais de cem livros. Cerca de a metade deles é sobre matemática
recreacional e a maioria é situada no Oriente Médio islâmico, embora ele também
tenha escrito histórias sobre rabinos, gregos, chineses e babilônicos.
Mas
apesar de sua paixão por culturas estrangeiras, ele só saiu do Brasil duas
vezes, para ir a Portugal e à Argentina.
Ele
morreu em 1974, tendo vendido mais de 1 milhão de livros no Brasil. O Homem que
Calculava continua sendo o mais famoso e ainda está em catálogo.
Minha
cópia já surrada é a 74ª edição. O livro foi traduzido para o espanhol, inglês
e alemão.
E
ele vai continuar a ser parte da cultura brasileira desde que o governo
brasileiro decretou, no ano passado, que o aniversário de Mello e Souza, no dia
6 de maio, é o Dia Nacional da Matemática.
Malba
Tahan foi chamado de 'brasileiro da Arábia' e 'Pelé dos números'. Mas será que
esse herói brasileiro gostava de futebol?
Não.
O matemático achava futebol 'um pouco chato'.
Matemática,
islã e colecionar sapos de porcelana eram muito mais divertidos." (BBCBrasil)
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