Helmut Sick chegou quando Getúlio Vargas era amigo da Alemanha, foi preso quando a geopolítica virou para os Aliados e morreu décadas depois como um dos maiores nomes da ciência brasileira
Àquela altura o Brasil ainda se mantinha neutro na guerra. O então presidente Getúlio Vargas, um simpatizante do nazifascismo, se deixava cortejar tanto pelos alemães quanto pelos Estados Unidos, ainda fora do conflito, mas buscando o apoio do Brasil. Mas não era só Getúlio que apreciava os alemães. O historiador Stanley Hilton relata no livro A Guerra Secreta de Hitler no Brasil que entre 1934 e 1938, quando o intercâmbio comercial entre os dois países havia dobrado em relação à década anterior, a população de origem germânica no país era “considerável e influente”. Parte disso se devia aos produtores brasileiros serem os principais fornecedores de café e algodão para os alemães, enquanto estes eram o principal fornecedores de produtos manufaturados para os brasileiros.
A Alemanha era vista como modelo de país moderno pela intelectualidade brasileira, o que se justificativa em parte pelos avanços da ciência alemã no período. Buscando se aproximar dos brasileiros ainda ao fim da Primeira Guerra, foram estabelecidas várias parcerias científicas. Em 1921, por exemplo, foi instalada no Brasil a Chimica Industrial Bayer, que além da importação e fabricação de medicamentos, patrocinava pesquisas nas áreas médica e farmacêutica. Foram criadas, também, revistas e associações científicas, com a participação de brasileiros e alemães. E, com a fundação da Universidade de São Paulo (USP) em 1934, alemães vieram criar os cursos de ciências naturais.
Foram essas boas relações que trouxeram Schneider e Sick ao Brasil. Tinham apenas suas credenciais científicas e nenhuma ligação com o partido nazista, ao que consta. Seu contato aqui era Lauro Travassos, entomólogo do Instituto Oswaldo Cruz, que ofereceu patrocínio à expedição de 1939. Mas quis o destino que os dois alemães se deparassem com a encruzilhada da guerra, o que mudou a história de ambos e, por tabela, da ciência brasileira. Em 1941, enquanto avançavam as negociações entre o presidente americano Franklin Roosevelt e Getúlio Vargas pela entrada do Brasil na guerra, Schneider pediu autorização para uma nova expedição, acompanhado de sua esposa Margarete, que fazia a taxidermia (conservação) dos animais coletados. No pedido ao Conselho de Fiscalização das Expedições Científicas e Artísticas no Brasil, Schneider se vê obrigado a informar o paradeiro de Sick, que ficara no Espírito Santo desde que a guerra se iniciara.
Embora Schneider tenha conseguido autorização e coletado várias aves depois incorporadas ao acervo do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, ele acabou chamando a atenção para o fato de seu ex-assistente estar circulando livremente na região de Santa Teresa (ES), ainda hoje lar de uma população de origem alemã. Em 1937, quando o Estado Novo foi decretado, o Governo passou a perseguir comunidades de japoneses, italianos e alemães no Brasil, como parte do projeto nacionalista de Vargas. Isso se refletia na vigilância e prisão de membros dessas colônias, o que só piorou quando o país rompeu relações com o Eixo e entrou na Segunda Guerra ao lado dos Aliados.
Assim, após ser notificado pelas autoridades de sua condição ilegal, Sick ainda pediu permissão para a coleta de aves, mas esta lhe foi negada. Em 1942, com a guerra declarada à Alemanha, o Conselho pediu sua prisão. Schneider também havia sido preso no Rio e o jornal O Radical destilou veneno aos “súditos do Eixo”. Depois de dizer “Chô! Chô! Passarinho” a Schneider, semanas depois estampava uma coluna com o título “Cantiga Velha de ‘Urubu Malandro’”. Nela, o jornal questionava os objetivos da expedição de Sick, e sugeria que já que a Ilha das Flores, onde ficava um presídio, “está cheia de ‘pássaros’ aos quais foram cortadas as asas”, quem sabe Sick “não se sentiria feliz em sendo também ‘engaiolado’?”
Helmut Sick viu-se, então, aprisionado num país que ele pouco conhecia, com sua pesquisa sobre aves abortada. Mas, o alemão mostrou que não se renderia facilmente, e decidiu ele mesmo pregar uma peça em seu destino fatídico. Não seria o cárcere que o impediria de fazer o que mais gostava. Em vez de morrer de tédio e desesperar-se, resolveu improvisar. Foram necessárias algumas adaptações, é claro. Atrás das grades, o estudioso trocou a análise de penas de aves no microscópio pela observação a olho nu dos cupins que andavam pelo presídio. Substituiu as horas na mata pela observação dos passarinhos da sua cela mesmo ou do pátio, durante os banhos de sol. Assim, logrou reunir 26 espécies de cupim, 11 delas nunca antes descritas pela ciência. Sobre as aves que viu nos presídios da Ilha das Flores e da Ilha Grande, onde passou ao todo 21 meses, publicou um trabalho sobre o andorinhão-estofador (Panyptila cayennensis) e outro sobre o chupim (Molothrus bonariensis), pássaro que põe seus ovos em ninhos de outras aves para que elas cuidem deles.
Schneider, seu mentor no Brasil, foi libertado em 1943 e voltou no ano seguinte ao seu país. Morreu na então Alemanha Oriental em 1946, por inanição, seguido por sua mulher, que se suicidou. Sick teve bem mais sorte e só alçou grandes voos depois de sair da prisão, em 1944. Logo tornou-se naturalista da Fundação Brasil Central, explorando o interior do país ao lado dos irmãos Villas Boas. O relato dessas incursões está no livro Tukani: Entre os animais e os índios do Brasil Central, de sua autoria. Em 1960, tornou-se pesquisador do Museu Nacional. E em 1985 lançou a primeira edição de Ornitologia Brasileira, até hoje a obra mais importante nesse campo de estudos no país. “Sick trouxe para o Brasil a visão integrativa entre ambiente e espécies, e também a cultura de passar muito tempo no campo fazendo observações”, diz o ornitólogo Luis Fábio Silveira, curador das coleções ornitológicas e professor do Museu de Zoologia da USP.
O feito de que Sick mais se orgulhava, no entanto, era de ter encontrado, no final de 1978, o hábitat da arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari). Descrita ainda no século XIX com base em exemplares de cativeiro e de museus, a origem exata da espécie era um mistério da ciência. Só se sabia que vinha do Brasil. Ligeiramente menor que sua parente arara-azul-grande (Anodorhynchus hyacinthinus) e maior que a famosa ararinha-azul (Cyanopsitta spixii), a arara-azul-de-lear foi descoberta no munícipio de Canudos, no sertão baiano, após anos de buscas feitas por Sick. A espécie estava à beira da extinção na época, ameaçada pelo tráfico de animais e pelo desmatamento que ainda hoje ameaça sua mais importante fonte de alimentação, os coquinhos da palmeira licuri.
Após a descoberta de Sick, foi contratado o primeiro guarda-parque para resguardar as aves. Atualmente, um esforço de organizações sem fins lucrativos, universidades e órgãos ambientais está fazendo com que as populações da ave aumentem, e hoje ela é listada como “vulnerável” na lista vermelha de espécies ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês).
Talvez a espécie não tivesse chegado tão longe sem a persistência de Sick, que morreu em 1991, no Rio de Janeiro. Além desse legado, ele deixou animais em museus, inúmeras publicações científicas, discípulos na ornitologia e, principalmente, muitas histórias que vão sendo desvendadas pelos pesquisadores.
EM MEIO A UMA MISSÃO CIENTÍFICA, O PLANO DOS NAZISTAS PARA INVADIR A AMAZÔNIA
A boa relação entre o Brasil e a Alemanha na primeira metade do século 20 abriu as portas a missões importantes, como a de Helmut Sick e Adolf Schneider, mas também deu margem à vinda de figuras controversas como Otto Schulz-Kampfhenkel, cineasta e geógrafo que, em 1935, trouxe de navio um avião cedido por Herman Göring, chefe da Luftwaffe, a força aérea alemã, para sobrevoar e filmar a região do rio Jari, no atual estado do Amapá. Schulz-Kampfhenkel coletou animais e fez filmes com os índios locais. No decorrer dos dois anos da expedição, o teuto-brasileiro Joseph Greiner, membro da equipe, morreu de malária.
Seu túmulo, ainda hoje às margens do rio, tem cravada uma cruz com seu nome e uma inconfundível suástica entalhada. O símbolo na cruz é a evidência de um plano secreto de Schulz-Kampfhenkel de mapear a região para preparar a invasão nazista da Amazônia através da Guiana Francesa, como relata o jornalista Jens Glüssing no livro Das Guayana-Projekt: Ein deutsches Abenteuer am Amazonas (“O Projeto Guiana: uma aventura alemã na Amazônia”, sem tradução).
Outro nazista que esteve por aqui em missão científica foi o zoólogo Hans Krieg. Recebido com entusiasmo por autoridades e empresários brasileiros, deu palestras em São Paulo e no Rio em 1937. Em seu pedido de financiamento para a viagem, escreve que os alemães, quando no exterior, deveriam ser “intransigentes e honestos apoiadores do Terceiro Reich, sem que parecessem propagandistas à primeira vista”, segundo relata a estudiosa Ute Deichmann, autora de Biologists under Hitler (“Biólogos sob Hitler”, sem tradução no Brasil). Na volta da expedição pelo Mato Grosso e pelo Gran Chaco, o objetivo oficial da visita de Krieg, a polícia apreendeu 399 quilos de animais, ossos e rochas coletados ilegalmente, prestes a embarcarem para a Alemanha.
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