Cinebiografia do fundador da igreja que desafiou a hegemonia católica no Brasil não dá pistas das ambições eleitorais do grupo
Em Rio das Flores, sua cidade natal, no Rio de Janeiro, Edir Macedo sofre bullying dos colegas de infância que o apelidam de “dedinho”, por causa de uma má formação nas mãos. Anos depois, na capital fluminense, acaba se vendo obrigado a romper com uma namorada que o acusa de só ter olhos para Deus. Em outro momento, pede para ser missionário e ouve um “não” esnobe do pastor de uma igreja evangélica que frequentava. No nascimento de sua segunda filha, recebe no hospital a notícia de que a menina tem lábio leporino e palato fendido. A todas as provações, responde do mesmo jeito. Ajoelha e diz de forma fervorosa que superará tudo em nome de Deus e que trabalhará para levar a mensagem do Senhor para cada vez mais pessoas. Não se conforma, em nenhum momento, com sua sina.
A narrativa de Nada a Perder - Contra Tudo. Por Todos dificilmente cativará quem já não está cativado. Como esperado em uma cinebiografia autorizadíssima pelo próprio retratado, o enredo de vitórias pessoais em nome de Deus do fundador da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) é cansativo e condescendente. Mesmo assim, há leituras possíveis do filme recém-lançado que permitem entender um pouco melhor as ambições do líder da Igreja que é um fenômeno brasileiro incontestável – está no rádio, televisão, no Legislativo, Executivo, Judiciário, em todos os cantos do país e em mais muitos outros cantos do mundo. “O filme busca consolidar o Edir Macedo como um grande mito religioso, uma figura que transcende a própria Universal e que encarna a trajetória dos batalhadores”, diz Roberto Dutra, sociólogo e professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf).
Por trás da previsibilidade recheada por músicas emocionantes do filme, há a mensagem clara da Universal que, com o passar do tempo, vem ganhando novas roupagens inspiradas na figura messiânica de Edir Macedo. Em uma cena, ainda na adolescência e acossado por dúvidas, o pastor diz que se questiona se faz sentido acreditar num Deus morto, referindo-se a uma imagem de Jesus. “O que posso esperar deste Deus preso na cruz?”, indaga. A frase, segundo Dutra, faz todo sentido no elemento de neojudaísmo que o pastor tem deixado transparecer cada vez mais. “Não é uma recusa de Jesus, mas uma intenção de fazer uma releitura. O cristianismo é marcado por uma teodiceia do sofrimento, a Universal promove a teodiceia da prosperidade, da valorização da vida e de determinados grupos sociais, no caso, os fiéis da Igreja”, diz Dutra.
No cerne do filme está o “pare de sofrer” com que a Iurd ganhou tantos seguidores e, por isso, o retrato de Macedo no enredo é o de alguém que superou todas as adversidades. Ora ele se incomoda com cultos de matriz afrobrasileira; ora suplanta o desafeto pessoal R. R. Soares, líder da Igreja Internacional da Graça de Deus; ora se insufla com o que julga ser uma imprensa parcial que persegue a ele e seus fiéis; ora enfrenta os poderes estabelecidos em Brasília; sempre se bate contra a doutrina e atuação da Igreja Católica. Na cena que abre o filme e que é retomada quase no desfecho, o pastor é preso por 11 dias, em 1992, no que ele enxerga ser um conluio sinistro entre o catolicismo e os poderes de Brasília – mas que, na verdade, é uma acusação de enriquecimento ilegal por meio do dizimo de seus fiéis. Depois, enfrenta uma audiência com um ministro da Justiça em que há a presença de um soturno bispo católico.
Segundo Dutra, apesar do roteiro do filme construído sob medida para Macedo, é inegável que ele transformou o campo religioso brasileiro. “Nenhuma instituição religiosa conseguiu desafiar mais o poder da Igreja Católica do que a Universal”, diz. Assim, na lógica do mito que busca criar, toda a perseguição a que acredita ter sido submetido reverteu-se em poder para ele próprio. Hoje, a Universal não tem apenas um canal de televisão – a Record, que faz frente ao gigantismo da rede Globo –, mas um partido político, o PRB, com um pré-candidato à presidência, o empresário dono da Riachuelo, Flávia Rocha, e uma influência em Brasília tão grande ou maior que a da Igreja Católica. Se Macedo não é um exímio orador, o que, aliás, aparece no filme, se é uma figura desprovida de carisma, sua busca é por criar uma imagem mística, algo institucional. “Ele nunca deu muito valor à teologia e não acredito que esteja difundido isso que é identificado como uma teologia neojudaica aos seus pastores, mas é algo bem mais de representação e imagem”, diz Dutra.
Assim como o filme não termina aqui – ainda haverá mais dois capítulos da cinebiografia, que nesta primeira versão se encerra em 1994 – a história da Universal e o modo como influenciará o Brasil nos próximos anos também não. Para Dutra, o que ficou claro com o passar dos anos é que Macedo é um pragmático quando o assunto é política. Vai de acordo com a correnteza. Se já posou ao lado de Dilma Rousseff, também flerta com a onda conservadora brasileira – “o que não era muito comum, já que ele próprio, por exemplo, chegou a escrever artigos defendendo o aborto” –, personificada por Jair Bolsonaro. “O mito Edir Macedo ainda não foi traduzido politicamente, existe certa margem de distância entre a igreja e o partido, mas eles já constituem uma máquina política fortíssima, com uma militância que, muitas vezes, advém da própria igreja”. As estreias do filme pelo país coalhadas de nomes da política foram uma mostra disso: o governador Geraldo Alckmin(PSDB) em São Paulo, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), em Brasília.
Por fim, do ponto de vista técnico, o filme é bem executado. As atuações são boas, a direção de arte também e há uma bela reconstituição de época do Rio de Janeiro. Mas nada no quesito artístico explica a propalada maior bilheteria da história do Brasil – que, segundo reportagens da Folha de S. Paulo e de O Estado de S. Paulo, é inflada por compra prévia de ingressos e distribuição para os fiéis da Universal que nem sempre comparecem as sessões e, por isso, deixam as salas de cinema esvaziadas. A Igreja rebate a acusação chamando os jornais de reprodutores de notícias falsas e dizendo, bem ao estilo da cinebiografia, que o único objetivo é “denegrir a fé evangélica”. Durante a sessão em que o EL PAÍS assistiu ao filme, numa segunda-feira à tarde, em São Paulo, havia dois outros espectadores e mais duas salas do cinema exibiam o longa-metragem quase simultaneamente.
A INCRÍVEL NOTA NO IMDB. Esqueça Cidadão Kane, considerado um dos melhores filmes, dirigido por um dos melhores diretores, Orson Welles, da história da sétima arte. Esqueça também O Sétimo Selo, principal obra do sueco Ingmar Bergman. Segundo a atual nota do IMDB, site referência que congrega avaliações de usuários e dados sobre filmes, Nada a Perder bate a nota dos outros dois. Enquanto os clássicos têm, respectivamente, 8,4 e 8,2, a cinebiografia de Edir Macedo fica com 8,5. O ranking do site funciona de acordo com a avaliação dos usuários e é conhecido por ser bem criterioso. Nada a Perder já chegou a nota 10 e tem caído nos últimos dias.
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