A crença em um deus onisciente fomenta a cooperação entre desconhecidos da mesma religião
Dezenas de milhares de pessoas se movem em torno do Kaaba, o grande cubo negro localizado no pátio interno da Grande Mesquita de Meca, em 2006. AP |
DANIEL MEDIAVILLA / EL PAÍS
Ninguém jamais provou a existência de um deus onisciente, que tem preferências morais e que pode nos punir se não o obedecermos. No entanto, a crença em um ser superior condiciona a vida de centenas de milhões de seres humanos em todo o planeta, que empreendem todos os esforços para agradá-lo. E esse comportamento peculiar tem desempenhado uma função essencial na evolução das sociedades humanas.
O antropólogo britânico Robin Dunbar, o pai da hipótese do cérebro social, estimou que o limite máximo para um agrupamento humano é de 150 indivíduos. Esse número coincide com as dimensões dos grupos de caçadores coletores, com o tamanho das comunidades agrícolas e até com a quantidade máxima de amigos que podemos gerenciar, de fato, no Facebook. No entanto, as sociedades humanas conseguiram ultrapassar de longe esse nível de complexidade, e se conhecem vários exemplos de cooperação e de sacrifícios extremos, como o dos combatentes em guerras, que dão a vida por milhões de compatriotas desconhecidos.
Uma equipe de pesquisadores encabeçados por Benjamin Grant Purzycki, pesquisador do Centro para a Evolução Humana, Conhecimento e Cultura da Universidade de Columbia Britânica em Vancouver (Canadá), estudou o papel ocupado pela crença em um deus moralista na construção de sociedades complexas e no fomento à cooperação entre seres humanos que vivem separados geograficamente e são completamente desconhecidos entre si. Em artigo publicado nesta semana na revista Nature, eles explicam como realizaram o estudo do comportamento de 591 pessoas de diversas comunidades, no mundo inteiro, que professavam religiões de todos os tipos, algumas de amplitude mundial, como o cristianismo e o budismo, mas também outras apenas locais. Com o uso de jogos que implicavam um compartilhamento de recursos, eles observaram que os indivíduos que acreditavam em um deus que define o que é o bem e o que é o mal, que sabe a todo instante o que estamos fazendo e que pune quando não gosta daquilo que vê, esses indivíduos se mostravam mais generosos com membros de sua mesma religião. Como explica Purzycki, “vale a pena ter um deus big brother, onisciente e com preocupações morais em lugares com maior presença de anônimos e menos responsabilidade. Os deuses evoluem”.
De alguma forma, a crença em um ente invisível que nos vigia para que não descumpramos as normas pode apresentar vantagens do ponto de vista evolutivo. Isso poderia ser explicado porque, embora a vigilância divina evite que cuidemos apenas do nosso próprio interesse, essas crenças podem também ter protegido os que a professavam contra a adoção de comportamentos egoístas que, nas sociedades humanas cada vez mais transparentes e nas quais a reputação é importante, pudessem levar a punições.
Além disso, conforme explica Manuel Martín Loeches, coordenador do Setor de Neurociência Cognitiva do Centro Misto UCM-ISCIII de Evolução e Comportamentos Humanos, que não participou desse estudo mas concorda com suas conclusões, é preciso levar em conta também os benefícios existentes para o grupo: “Nós, humanos, nos sacrificamos por ideais que não existem materialmente ou que são intangíveis, por símbolos como a pátria, a bandeira, a honra ou a dignidade. Isso faz parte do complexo jogo do grupo, da mente social do ser humano, sem necessidade de religião. Em nível individual, não traz benefícios, os benefícios são para o grupo, onde seriam abundantes os genes do ser sacrificado. Supõe-se que os seus descendentes diretos poderiam, estes sim, se beneficiar, por serem vistos como filhos de uma pessoa especial e receberem a gratidão do restante do grupo”.
A punição sobrenatural, a preocupação moral dos deuses e a onisciência teriam evoluído juntamente com a complexidade social. “Vários estudos indicam que os deuses moralistas funcionam como um tipo de mecanismo de defesa frente a grandes populações nas quais é mais fácil ser egoísta ao interagir com multidões anônimas o tempo todo”, explica Purzycki. “Já foi comprovado cientificamente, com ressonância magnética funcional, que tendemos a ser menos egoístas e injustos quando nos sentimos observados”, explica Martín Loeches. “É provável que essas crenças ajudem a preservar a complexidade social e a cooperação”, acrescenta Purzycki.
Sobre as implicações desses resultados, Azim Shariff, pesquisador da Universidade do Oregon, comenta que a crença em seres sobrenaturais não é uma condição necessária para a existência de sociedades complexas. “Há vários caminhos culturais capazes de instituir os níveis elevados de cooperação necessários nas sociedades complexas. A punição sobrenatural demonstrou ser uma das soluções eficazes diante do desafio da cooperação social, uma solução eficaz e intuitiva o bastante para ter surgido de forma reiterada ao longo da história”, avalia.
As religiões organizadas seriam uma tentativa de estruturar os sistemas de reciprocidade que haviam mantido unidas as pequenas sociedades humanas primitivas, quando estas ainda tinham um tamanho que permitia que todos os seus membros fossem conhecidos, o que limitava a tentação da busca pelo bem próprio em detrimento do grupo. Em muitos fundamentos de várias religiões é possível observar um princípio de reciprocidade, que foi um traço essencial da evolução humana. O ditado cristão “ama o próximo como a ti mesmo” encontra um eco no Islã quando lemos, no Kitab al Kafi, “não faça aos outros aquilo que você não gosta que façam a você”. Textos semelhantes podem ser encontrados nas religiões orientais e até mesmo no confucionismo chinês: “Nunca imponha aos outros aquilo que não escolheria para você”.
Estudos como este publicado agora pela Nature permitem que se deduza que a religião constitui um pilar importante para a sustentabilidade das sociedades complexas. Sobre esse aspecto, Martín Loeches avalia que “não é preciso se alarmar”. “Digamos que essas religiões aumentam ou amplificam algo que todos levamos dentro de nós: um instinto moral, um senso de justiça, do bem e do mal. Não é preciso religião para isso. Está codificado nos nossos genes; as religiões moralizantes o potencializam, mas poderiam haver outras alternativas, como a recordação, as homenagens... premiando as boas ações, mais do que punindo as más”.
Embora muitos trabalhos tenham demonstrado a importância das crenças religiosas como cimento social, outras pesquisas recentes observaram que, em especial quando se trata de ajudar desconhecidos, os ateus são mais generosos.
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