Um dia depois de o Governo comemorar um acordo que poderia solucionar a crise, greve se mostrou mais complexa e aglutinadora do que se previa
Um dia depois de o Governo Michel Temer comemorar um acordo com o grupo de caminhoneiros em greve, o caminho da solução do problema se mostrou mais difícil do que a versão oficial tentava apontar. Segundo os dados governamentais, 60% das interrupções rodoviárias continuaram. O movimento, organizado pelo WhatsApp, se mostrou mais complexo e descentralizado. E foi capaz de atrair o apoio de setores diversos, da direita à esquerda, da classe média ao grande produtor rural, ainda que a crise de abastecimento tenha seguido nesta sexta, com postos se dividindo entre filas quilométricas e o vazio pela falta de combustível em várias cidades .
Desde o meio do mês os movimentos que representam os caminhoneiros alertavam o Governo para a possibilidade de uma paralisação por conta do aumento no preço do diesel. A Associação Brasileira dos Caminhoneiros (Abcam) protocolou em 14 de maio um ofício na Presidência da República e na Casa Civil para pedir medidas contra o constante aumento dos combustíveis. Reclamavam que em 11 de maio o diesel atingia o maior nível desde meados de 2017 e a oscilação de preços constante prejudicava a previsibilidade do valor dos fretes. Foram nada menos que dez aumentos em um mês, por conta da flutuação do preço internacional do barril de petróleo seguido pela Petrobras. Em 16 de maio, sob a mesma motivação, a Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos (CNTA), que reúne um milhão de filiados, também pediu audiência em caráter emergencial com o Governo.
Ambas, entretanto, foram ignoradas. E, com isso, a mobilização começou a ganhar corpo. O descontentamento dos caminhoneiros se espalhou rapidamente pelas redes sociais e pelos grupos de WhatsApp. E a categoria, geralmente desmobilizada, conseguiu se unir de forma descentralizada e horizontal, sem líderes claros. Nas estradas, se concentraram especialmente os trabalhadores autônomos (650.000 dos dois milhões de caminhoneiros do país, consultoria Ilos Supply Chain), mas também profissionais ligados a transportadoras. As empresas não podem, por lei, organizar paralisações (chamadas de locaute) e, caso isso seja provado, poderão sofrer sanções legais.
"A categoria dos caminhoneiros é desorganizada, não paga sindicato e as associações representativas. Mas isso foi a gota d'água para nos organizarmos. Hoje, pelo WhatsApp, pelas redes sociais, um fala aqui, o outro fala aí, vai para um grupo, vai para o outro e em dez minutos está no Brasil inteiro", afirma José Araújo Silva, o China, presidente da União Nacional dos Caminhoneiros (Unicam). A organização destes trabalhadores pela internet é justamente a chave da dificuldade enfrentada pelo Governo nesta negociação.
Nesta quinta, representantes de Temer se reuniram com 11 associações do setor, um número que, por si só, já mostra a dispersão da categoria. Nove delas assinaram o acordo, celebrado pelo Governo como a resolução do problema —apenas a Abcam e a Unicam não assinaram. Mas a própria CNTA, uma das signatárias, já avisava pela manhã que "nenhuma pessoa ou entidade tem, sozinha, o poder de acabar com essa mobilização". Também alertava que as entidades haviam apenas concordado em comunicar aos trabalhadores nas estradas sobre as propostas do Governo. Em vídeo divulgado no final do dia, o presidente da entidade, Gilmar Bueno, afirmou que "em nenhum momento nenhuma das entidades que participaram [da reunião] se posicionou no sentido de comprometer ou desmobilizar este movimento."
Durante todo o dia, a posição dos grevistas era de crítica tanto ao Governo quanto às mobilizações que participaram do encontro. "Elas são fascistas, estão a mando de empresas que têm bastante caminhão, a mando de empresários. Não nos representam. Aqui ninguém nos representa, é o povo que está aqui", afirmava o caminhoneiro Rafael Machado, que estava em um dos bloqueios na rodovia Régis Bittencourt, em São Paulo, ao repórter Felipe Betim. Durante dos dias de greve também não faltaram demonstrações de apoio a uma "intervenção militar", ainda que não se saiba o alcance e a representatividade desse seguimento mais radical no conjunto.
Na BR-101, altura da entrada do Recife, em Pernambuco, Marcelo Freitas, dono de três caminhões, disse que passava o dia com os grevistas, levava água e alimentos, e voltava para casa depois. “Meus três funcionários estão parados, um no Rio de Janeiro, um na Bahia e outro aqui”, explicou. “Todos nós temos contas acumuladas. Queremos trabalhar, mas não sairemos daqui enquanto o valor do diesel não abaixar”, relatou à repórter Marina Rossi.
A situação se tornou mais crítica ainda depois que o Governo afirmou que autorizava o uso das Forças Federais para desbloquear as estradas. “Se as Forças Armadas vierem, vamos resolver da melhor maneira possível”, dizia Anderson Wanderley, em Recife. “Mas eles não virão. Estamos com apoio da população, recebemos doações o tempo todo e não estamos impedindo ninguém, além dos caminhões, de passar”, contava, enquanto carros buzinavam em apoio ao movimento.
Tempestade perfeita
A mobilização contra o aumento dos combustíveis acabou pressionando um nervo já dolorido na sociedade. E, por isso, conseguiu aglutinar setores geralmente distantes ou opostos: da classe média, irritada com os constantes aumentos da gasolina, aos produtores rurais, que reclamam dos prejuízos do setor com o combustível em alta; da esquerda, que aproveitou para criticar a política de preço livre da Petrobras, à direita, que mirou na situação para denunciar o desmonte da petroleira gerado pela corrupção dos governos de esquerda.
A Central Única dos Trabalhadores (CUT), alinhada ao PT, declarou apoio aos motoristas. “A população precisa apoiar este movimento que não é somente contra o reajuste dos combustíveis, é contra a privatização da Petrobras. O Governo está utilizando esses aumentos para defender a venda da estatal”, diz o presidente da entidade, Vagner Freitas, aproveitando para jogar a culpa na política de preços implementada sob Temer. A Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja) também endossou a paralisação dos caminhoneiros, apesar do impacto que a greve tem no escoamento da produção. O presidente da entidade, Bartolomeu Braz Pereira, afirmou que dentro da associação existem inclusive setores favoráveis à continuidade da greve mesmo caso os caminhoneiro cedam. "Entre o início da safra e a colheita tivemos um aumento de óleo diesel de 60 centavos por saca. Gastamos quase 3 bilhões a mais somente em combustível. E esse gasto vai pro produtor", afirmou.
Formou-se, então, uma tempestade perfeita sobre um Governo de popularidade extremamente baixa. No Twitter, a hashtag ForaTemer chegou a segundo lugar nos Trending Topics, logo depois de #TemerAbaixaAGasolina. Tudo isso torna o futuro da greve e seus desdobramentos ainda mais incertos. O transtorno provocado pelos bloqueios continuados vai fazer ruir essa heterogênea coalizão anti-Temer? Não havia ainda respostas. Por ora, o Partido dos Caminhoneiros atraía o apoio de pré-candidatos presidenciais. O deputado de extrema-direita, Jair Bolsonaro, o segundo nas pesquisas, animou os grevistas, criticou os preços praticados pela estatal, mas também os bloqueios, segundo ele inflados por "infiltrados petistas". Pela esquerda, Ciro Gomes (PDT) acusou a Petrobras de querer apenas beneficiar os acionistas privados da empresa mista. "A alta dos combustíveis é uma aberração que praticamente nega a razão de ser da própria existência institucional da Petrobras. A política de preços adotada está equivocada e desrespeita a sua estrutura de custos", disse o pedetista, no Twitter. "O Exército nas ruas é mais uma demonstração da incapacidade do Temer de lidar com uma crise criada por um dos seus homens: Pedro Parente. Temer age com covardia, com uma política de preços de combustíveis que se ajoelhou diante do mercado. E agora apela para a força militar", escreveu Guilherme Boulos, do PSOL. Era o sinal definitivo de que a categoria havia instalado o debate sobre os rumos e o papel estratégico da Petrobras num ponto alto da agenda eleitoral.
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