A crescente força do dólar e seu impacto nas divisas latino-americanas faz com que o continente se torne mais atrativo aos turistas internacionais
Em 1943, Walt Disney lançou Alô, Amigos!, um filme apoiado pelo Governo de Franklin Delano Roosevelt para melhorar as relações entre os Estados Unidos e a América Latina. Ainda que, já nessa época, o retrato feito estivesse cheio de lugares-comuns e mal-entendidos, serviu para atrair pela primeira vez espectadores de todo o mundo às atrações turísticas de um continente que, até então, estava reservado somente aos viajantes empedernidos. Três quartos de século depois, e salvo algumas exceções, a indústria turística latino-americana reconhece sua posição de desvantagem em um mercado tão competitivo. E em uma situação econômica complicada, com um crescimento do PIB que não decola – a previsão para esse ano à região é um modesto 1,8%, segundo o FMI – a região colocou seus olhos no turismo como um instrumento para se fortalecer. “É uma nova oportunidade à América Latina”, afirma o ministro brasileiro do Turismo, Vinícius Lummertz. “É mais um carro em que podemos subir, como foram em sua época a cana de açúcar, o ouro, o café, o petróleo e a soja”.
Em 2016, toda a América Latina e o Caribe receberam pela primeira vez mais de 100 milhões de visitantes internacionais, um número impulsionado pelo crescimento de Cuba, que graças ao levantamento parcial das sanções dos EUA recebeu 16% a mais de passageiros, segundo os dados da Amadeus Analytics. Mesmo sendo praticamente o dobro em relação a 2000, sua parte do mercado turístico global continua sendo a mesma: aproximadamente 8%. Nesse mesmo período, a Ásia Oriental e o Pacífico passaram de 9,3% a quase 13% do total. “Quando se considera a riqueza cultural da América Latina e esse dom da hospitalidade que temos, evidentemente há um grande potencial que não é aproveitado”, afirma Gloria Guevara, executiva-chefe do Conselho Mundial de Viagens e Turismo (WTTC).
Essa última organização estima que o investimento no setor turístico da região chegará esse ano a aproximadamente 67 bilhões de dólares (253 bilhões de reais) (equivalente a 6,2% do PIB), com o México recebendo 18% desse valor. Para 2028, o número superará os 100 bilhões de dólares (378 bilhões de reais), crescimento de 4,6% anual.
Esses números dependem do cumprimento das previsões e mesmo que a economia do continente dê mostras de melhora, ainda há motivos para preocupação. Duas conturbadas campanhas eleitorais – a mexicana, que está prestes a acabar, e a brasileira, que ainda dura até outubro – colocaram muitos projetos em pausa. Enquanto isso, na Argentina, a queda do peso (que chegou a perder até 50% de seu valor em relação ao dólar desde o começo do ano) e o posterior pedido de resgate ao FMI quebraram uma tendência que se mostrava positiva. “Durante os primeiros meses do ano, a estabilidade monetária na Argentina despertou novamente a vontade de viajar. Mas a retomada da inflação piorou a tendência”, diz Olivier Jager, da ForwardKeys.
Mas o nebuloso contexto econômico tem um lado ensolarado: a crescente força do dólar norte-americano (no calor do aumento das taxas de juros no país norte-americano) e seu subsequente impacto nas divisas latino-americanas faz com que o continente se torne mais atrativo aos turistas internacionais. Outro beneficiado é o Canadá: com uma política de vistos mais atrativa (seguindo o caminho contrário ao seu vizinho do sul) e, principalmente, uma moeda mais fraca do que o dólar norte-americano, o turismo procedente da América do Sul cresceu 19% no ano passado (e 47% do México), contribuindo para que o país batesse seu recorde global de visitantes em 2017.
Mapa heterodoxo
Mas nem todos os países da região são igualmente beneficiados. É difícil estabelecer um padrão comum a todos os países do continente: para começar, falamos de um mapa turístico bem heterodoxo, e não só nos termos absolutos representados pelo 35 milhões de visitantes por ano do México (um de cada três da região) comparados com os 969.000 da Bolívia. Somente o México está entre os 25 países com o setor turístico mais competitivo, de acordo com o Foro Econômico Mundial (WEF, na sigla em inglês); outros quatro países (Brasil, Costa Rica, Panamá e Argentina) estão no top 50.
O principal desafio do setor na região é a criminalidade, um problema que custa à economia da região o equivalente a 3,5% do PIB, de acordo com estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento. O mesmo estudo diz que “o impacto é maior nos países que dependem do turismo”. “Os turistas, especialmente os da Ásia, são muito sensíveis aos problemas de segurança”, explica Jorge Schoenenberger, sócio de viagens e turismo da Deloitte Espanha. “Se não estão resolvidos, esse motor de crescimento não pode ser aproveitado”.
O problema é que a solução à violência, sobretudo nos casos crônicos de alguns países do continente, vai além do que as autoridades turísticas e as empresas podem fazer. “Estamos trabalhando lado a lado com os Governos, mas esse é um trabalho que eles devem fazer”, afirma sucintamente Guevara. É um círculo vicioso: em muitos casos, para determinados setores da população o turismo é a única fonte de renda regular não relacionada à violência.
A importância do turismo aos governos está em sua capacidade de criar empregos. De acordo com dados do WTTC, são 10,6 milhões de empregos em 2018, que serão 13,2 milhões dentro de dez anos. Mas mais do que o potencial quantitativo, afirmam os especialistas, trata-se principalmente do potencial qualitativo. “A vantagem de nosso setor, algo que não vi em nenhuma outra parte, é que permite a mobilidade”, diz Guevara. “A pessoa começa como recepcionista e pode chegar a gerente geral”.
Tecnologia
E o que é mais importante: com uma economia orientando-se ao setor de serviços, o turismo gera os empregos que convém criar. “Na última reunião de ministros do Turismo, chegamos a conclusão de que devemos criar trabalho com tecnologia. O turismo está gerando um de cada cinco novos empregos no mundo, e muitos deles são tecnológicos”, diz Lummertz, que dá como exemplo a criação das agências de viagens online, a criação de vistos eletrônicos e passaportes biométricos. “Os avanços da tecnologia fazem com o que o futuro do turismo na região tenha inúmeras possibilidades”, afirma Pablo Chalén, diretor comercial da Amadeus para a América Latina, “e a boa notícia é que ainda há muito a se desenvolver”.
Devido ao forte peso do turismo interno, a indústria se desenvolveu de maneira muito endógena e pouco competitiva, tanto através de mercados aéreos fechados como de indústrias hoteleiras. “Não há campeões nacionais”, diz Schoenenberger. “Quando você tem um país continental como o nosso é preciso lidar com os números de maneira diferente”, afirma Lummertz. “Somente a cidade de Gramado, no Rio Grande do Sul, teve seis milhões de visitantes, a maioria deles brasileira”.
Também existe, por sua vez, a falta de infraestrutura de transporte, começando pelos dois gargalos da infraestrutura aeroportuária e os sistemas de navegação aérea. Os Governos da região está fazendo esforços, incluindo capital internacional e privado. Grandes operadores como a alemã Fraport, o Changi Group de Singapura e a espanhola Aena estão entrando nos processos de privatização que, a conta-gotas, estão sendo abertos na região.
Apesar dos progressos, a tarefa continua sendo muito grande. Os aeroportos do sul do Brasil (incluindo alguns dos mais importantes do país, como o Santos Dumont no Rio de Janeiro) têm problemas crônicos para permanecer abertos em condições meteorológicas ruins. Buenos Aires precisou abrir ao tráfego civil uma base aérea a 25 quilômetros do centro da cidade para receber o crescente tráfego das empresas aéreas de baixo custo que não cabem nos outros dois aeroportos da capital.
E a pressa é grande. Entre 2008 e 2016, o número de passageiros transportados na região se multiplicou por dois, até 266 milhões de passageiros. O surgimento de empresas aéreas de baixo custo (como a brasileira Gol e argentina FlyBondi) e a entrada de grandes atores regionais como a chilena LAN (que comprou a brasileira TAM para criar a maior companhia aérea da região) e a colombiana Avianca (que adquiriu a costa-riquenha TACA) revolucionaram o negócio. “É um mercado que ainda não atingiu a maturidade”, afirma Marco Sansavini, diretor comercial da Iberia. “E estamos notando um aumento da sofisticação da demanda como em mercados mais desenvolvidos como o norte-americano e o europeu”.
E a falta de infraestrutura faz com que a redução de tarifas ainda fique longe do que se conquistou em outras regiões emergentes como o Sudeste Asiático. “A conectividade dentro da região é escassa e complicada”, afirma Guevara. “Há 25 anos um voo entre Londres e Milão podia custar 10 vezes mais do que agora. E mesmo com a entrada de empresas aéreas de baixo custo, ainda não se chegou a esse ponto”. Para 2036, esperamos mais de 750 milhões de viagens em toda a região. Sem uma ação combinada agora, nos dirigimos a uma crise” afirmou o presidente do sindicato patronal das empresas aéreas IATA, Alexandre de Juniac, em uma conferência em Santiago.
A solução a essa situação vem de fora. “Vimos um potencial muito forte no mercado da vertente do Pacífico”, diz a Iberia. Após uma parada durante a Grande Recessão, a empresa aérea espanhola começou a reforçar seus mercados latino-americanos, com a ajuda de sua matriz IAG, que também criou uma marca de voos de longas distâncias e baixo custo, a Level. Não está sozinha: a norueguesa Norwegian Air Service também iniciou serviços de longas distâncias entra a Europa e a América do Sul, e assim que a última geração de aviões de longas distâncias e baixo consumo entrar em serviço (liderados pelo Airbus A330neo, que será estreado pela portuguesa TAP), é possível esperar que mais atores entrem no mercado.
Um problema adicional são as travas burocráticas e políticas que dificultam os negócios. Um exemplo ocorreu ano passado, no Brasil, quando explodiu uma guerra aberta entre as empresas aéreas, as autoridades de aviação civil e a Justiça pelo fim da obrigação das empresas de despachar pelo menos uma mala da bagagem sem custo adicional. “Toda a discussão sobre a evolução do setor aéreo na América Latina acaba centrando-se nos aparentemente insuperáveis obstáculos do nível de imposição e uma falta de apoio geral da indústria por parte dos Governos regionais”, diz a empresa de análises CAPA. “Para cada passo à frente que as companhias aéreas dão para mudar a visão dos Governos latino-americanos sobre a aviação, esses dão dois passos atrás. Geralmente, optam por agir a curto prazo, espremendo o dinheiro das empresas aéreas para projetos que não lhes trazem nenhum benefício, a elas e a aviação em geral”. A própria IATA afirma que “se forem aproveitadas todas as oportunidades para que o mercado possa crescer sem travas” até 2032 o crescimento do PIB teria um acréscimo de 15% e surgiriam 900.000 vagas de emprego adicionais.
A burocracia não afoga só o mercado aéreo. No Índice de Competitividade Turística do WEF, que mede seus parâmetros em uma escala de um a sete, somente um país da região, o Chile, supera o cinco no parâmetro “facilidade para fazer negócios”, enquanto cinco (Nicarágua, Brasil, Argentina, Bolívia e Venezuela) não superam o 3,5 que indica a reprovação. Autoridades que se aniquilam, uma política fiscal confusa e excesso de restrições ao crescimento estão entre as principais queixas do setor.
Mas uma liberalização sem moderação também não é desejável. “É fundamental prestar atenção à gestão do turismo”, diz um relatório recente da Organização Mundial do Turismo e da Organização dos Estados Americanos. “Enquanto os países lutam por maximizar o impacto positivo do setor, isso deve se contrapor à necessidade de diminuir os riscos atuais e potenciais, como a saturação turística e os efeitos da mudança climática”.
O clima é um desafio sério, especialmente ao turismo de sol e praia no Caribe. No ano passado, o furacão María devastou a ilha de Porto Rico causando um número de mortos que varia entre os 64 oficiais e os 4.600 de um estudo, assim como 94 bilhões de dólares (355 bilhões de reais) em perdas econômicas.
Esgotamento do modelo
Em relação à saturação turística, o esgotamento do modelo de sol e praia, uma mudança de perspectiva entre as gerações mais jovens e o envelhecimento da população – o setor de turistas maiores de 50 anos é o que mais cresce, de acordo com um estudo da Euromonitor – está levando a indústria a procurar novas alternativas. Entre outros, o turismo gastronômico (a presença de três restaurantes, mais do que qualquer outro país da região, na lista dos 50 melhores do mundo da revista Restaurant serviu para atrair o interesse internacional no Peru) e experiências mais autênticas, como hospedar-se em favelas e conhecer em primeira mão culturas indígenas.
Nos anos oitenta do século passado, a Costa Rica decidiu apostar no turismo ambiental para se diferenciar de outros destinos da região. “O turismo se transformou em uma base fundamental de nosso projeto de país, porque mais de 90% do dinheiro fica no país”, disse a ex-presidenta Laura Chinchilla na recente reunião do WTTC em Buenos Aires (a que o EL PAÍS compareceu convidado pela organização). “Se há uma indústria que contribuiu a nosso progresso, é essa”.
E até mesmo esse modelo de sucesso precisa de mudanças. “Acho que nos últimos dez anos, a Costa Rica se transformou em um destino turístico para famílias, com três gerações que viajam juntas”, dá como exemplo o empresário hoteleiro Hans Pfister, do grupo costa-riquenho Cayuga. “Outra mudança é que, hoje em dia, o turista é mais exigente e de luxo. Já não aceita cabanas sem ar condicionado”.
Acelerar a reinvenção e fazê-la constante é uma das prioridades do setor. “Precisamos nos expor mais à competição externa, porque temos muita vocação turística e muito potencial a desenvolver”, diz Lummertz. “Nosso objetivo é internacionalizar a cadeia de valor do turismo e, com isso, ajudar nossa economia”.
UM SETOR HOTELEIRO À CAÇA DE INVESTIDORES
Durante décadas, e com exceção das grandes capitais e alguns destinos turísticos de sol e praia, o setor hoteleiro latino-americano pecou pela falta de desenvolvimento. O ciclo econômico expansivo do final de década passada e começo dessa mudaram a situação, com taxas de crescimento acima de 4% ao ano. Com o estancamento da economia em 2015 e a recessão de 2016, ocorreu um excesso de nova oferta que o mercado ainda está terminando de absorver. "A demanda está crescendo mais rápido do que a oferta pela primeira vez em seis anos", diz Patricia Boo, diretora regional da STR para a América do Sul e Central.
Parte da responsabilidade é dos Jogos Olímpicos de 2016 no Rio de Janeiro, que provocaram excesso de oferta na cidade brasileira e alteraram os números de receita por quarto disponível (RevPAR, no acrônimo em inglês), a principal estatística do rendimento hoteleiro. "Em 2017, a média do RevPAR aumentou em algumas cidades, como Cartagena, Santiago e Mendoza, mas no geral diminui bastante, especialmente no Brasil", diz Boo.
O capital interno continua sendo o rei. "É o principal jogador", afirma Arturo García Rosa, presidente e fundador das Conferências Interamericanas de Investimento em Hotel e Turismo da América Latina (SAHIC), "mas hoje todos estão atrás de uma boa oportunidade, especialmente com as moedas desvalorizadas". O mercado brasileiro desperta mais dúvidas pela instabilidade política e sua dependência do mercado interno, mas García Rosa é otimista. "Estamos vendo uma recuperação do preço das matérias primas", diz. "E o real continuará muito desvalorizado, de modo que boa parte da demanda que geralmente iria para fora continuará ali".
Os grandes grupos hoteleiros saíram às compras. "No ano passado assinamos 43 contratos de gestão", diz Antonietta Varlese, diretora de comunicação da rede francesa Accor para a América Latina. "Para 2018, consolidaremos o desenvolvimento dos últimos três anos com novas aberturas. Nosso objetivo é chegar a 400 hotéis abertos no final de 2018 e até 500 hotéis no final de 2020". Não é a única. A espanhola NH investiu 65 milhões de euros (287 milhões de reais) em 2015 para comprar a colombiana Royal, enquanto a Hilton superou os 100 alojamentos e tem outros 70 em desenvolvimento.
Mas, segundo Clay Dickinson, diretor gerente para a América Latina da consultora imobiliária JLL, existem hoje duas grandes estratégias de investimento. "Estão vindo da Europa grupos hoteleiros interessados na gestão e com um ponto de vista estratégico, procurando plataformas para crescer", diz. "O que vem dos Estados Unidos são mais Family offices e fundos de capital de risco, que procuram edifícios simbólicos simples de se conseguir". Dickinson dá como exemplos desse último caso o Windsor Atlântica, na praia de Copacabana no Rio de Janeiro, adquirido pela Blackstone e transformado em um Hilton, e o Sheraton da praça San Martín de Buenos Aires, comprado no começo do ano por um fundo com sede em Delaware e com capital argentino.
Uma das características dessa expansão é que os investidores internacionais estão se aventurando a ampliar sua gama de produtos – entrando em espaços, como os hotéis de tamanho médio e baixo, até agora fora do radar dos grandes grupos – e em novos destinos até agora ignorados, como San Luis Potosí (México) e Copiapó (Chile). "A dificuldade era encontrar produto disponível que cumprisse com os padrões de qualidade", diz Dickinson.
Da mesma forma que no restante do setor turístico, entretanto, ainda existem muitos desafios pela frente. O primeiro, a violência, um dos fatores pelos quais o capital chinês, tão ativo no resto do mundo, não entra com o mesmo entusiasmo no continente. "O Rio de Janeiro, que chegou a ser um dos principais mercados globais, foi varrido pela violência", diz García Rosa. "O que a região realmente precisa é ser mais transparente e menos complexa na regulamentação", afirma Dickinson. "Os investidores me dizem que no Brasil e no México uma execução hipotecária pode demorar até cinco, dez anos. O capital pode escolher, e se tem insegurança jurídica prefere obter 5% de rendimento nos Estados Unidos do que 20% na América Latina".
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