Qual o grau de autonomia que o membro de uma organização política pode ter para se posicionar
contra a orientação de seus dirigentes? Total? Relativa? Nenhuma? Pode parecer uma questão
simples, mas não é. Sempre que uma organização política decide coletivamente, esta passa a ser
sua posição e aqueles que divergem da decisão tomada democraticamente pela maioria de seus
membros devem ter sempre a oportunidade de mudar, no mesmo fórum, as decisões. No entanto,
quando a organização política impõe a seus membros uma decisão tomada pela cúpula dirigente a
despeito da posição de seus membros e, mais do que isto, quando se trata de uma decisão que se
contrapõe aos princípios desta organização, nenhum de seus filiados pode ser obrigado a adotá-la,
a não ser que se trate de uma organização dirigida de maneira autoritária e oligárquica.
De fato, o fenômeno da oligarquia é a configuração do mais radical sintoma do autoritarismo nas
organizações políticas e seu fundamento permite mostrar as discrepâncias entre o que é dito,
enquanto discurso oficial, e o que é realizado em seu âmbito interno, enquanto prática. Quando
uma organização política defende publicamente o princípio da ética, compromete-se a cumprir
perante membros, filiados e seguidores o que avalizou. Ao não fazê-lo, perde legitimidade como
organização e desautoriza a crítica a membros que se recusem a seguir uma ordem da direção que
seja contrária aos princípios fundamentais que a constituíram.
Para justificar as flagrantes incoerências entre discurso e prática política, os críticos internos são
tratados, em geral, com certo desprezo. Suas atitudes são desqualificadas e transformadas de atos
políticos em divergências pessoais. Alega-se que tais divergências deveriam ser tratadas
internamente, mas ao mesmo tempo não se condena o fato de que a organização tomou uma
decisão pública por imposição de sua oligarquia dirigente, sob protestos de vários de seus
membros. O mandato é da organização política, mas é também dela a garantia de manutenção da
coerência de seus princípios e compromissos programáticos pelos seus membros: não há
obrigação e responsabilidade de apenas uma das partes.
A organização é, de fato, fundamental para concretizar o poder político da sociedade e o único meio
de criar a vontade coletiva, pois esta só poderá ter êxito à medida que resultar da convergência de
interesses e da solidariedade entre os indivíduos, daí porque a organização ter se transformado no
instrumento principal de luta política. Um indivíduo, agindo isoladamente, não tem condições de se
defender diante dos grupos e classes organizados. É congregando-se em organizações políticas
que os indivíduos podem adquirir resistência política e realizar projetos coletivos.
No entanto, o princípio da organização pode encobrir outros perigos, como indicava Robert Michels
há quase um século. Se o ideal prático da organização política é a democracia, este sistema não
oferece qualquer garantia contra a formação, em seu interior, de um "estado-maior" oligárquico e
antidemocrático (ou pseudo-democrático), sob a alegação de que a autonomia dos membros da
organização é impraticável, porque tais membros não podem ser sempre ouvidos para deliberar
sobre todos os assuntos.
Assim, a autoridade da direção, consequência inevitável de toda a organização relativamente
grande, vai, paulatinamente, concentrando maior capacidade de decisão no grupo oligárquico,
retirando-a dos seus membros. As grandes questões são resolvidas em comissões e o direito de
opinião dos membros filiados torna-se, assim, cada vez mais ilusório. Formaliza-se uma estrutura
apoiada na "competência política da direção", as jurisdições se subdividem e forma-se uma
hierarquia na qual prevalece o princípio da autoridade, cuja observância transforma-se no
catecismo das organizações. Arranjos, composições, acordos que garantam o poder político a
qualquer custo se sobrepõem à ética e aos princípios. É a valorização da política de resultados.
Investidos de funções de realce e prestígio, alguns dirigentes esquecem os princípios
democráticos e buscam, indefinidamente, manter sua posição, que não é mais o resultado das
relações de força da democracia, mas que se perpetua por já estar constituída. O dirigente, se
contestado, sendo incapaz de aceitar a crítica a si mesmo, não reluta em transferi-la para a
organização, comprometendo a todos os membros e envolvendo-os como cúmplices e
responsáveis por suas atitudes, esquivando-se ardilosamente dos problemas. Toda a crítica à
direção é transformada em crítica à organização e todos os membros da organização se veem
comprometidos pelas decisões da oligarquia. Aqui a armadilha é não distinguir o que é
autoritarismo interno do que é filiação: tudo precisa ser uma mesma coisa. É necessário distinguir
a organização dos dirigentes, mas não se pode deixar de responsabilizar os membros pelos
dirigentes que possuem.
A oligarquia tem receio dos aspirantes a seus postos e por esta razão fará questão da disciplina,
abominará os debates e, tanto quanto possível, fará com que os opositores internos se calem. Os
oligarcas não hesitam em rotular seus oponentes como incompetentes, agitadores e demagogos
nem em acusá-los de agir por motivações pessoais. Parafraseando Michels, os revolucionários de
ontem são os reacionários de hoje.
Entretanto, no mundo da valorização das formas ainda há conteúdo, ainda há revolucionários. Ainda
bem que existem os que, como o Flávio Arns, se envergonham das práticas e das orientações que
os ex-revolucionários consideram normais; os que, no dizer de Hannah Arendt, se envergonham da
banalização do mal e da injustiça.
José Henrique de Faria é professor do Programa de Mestrado Interdisciplinar em Organizações e
Desenvolvimento da FAE " Centro Universitário e professor senior do Programa de Pós-Graduação
em Educação da UFPR.
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